Friday, June 06, 2008

O socialismo de resultados

O socialismo de resultados

Denis Lerrer Rosenfield

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A discussão sobre a natureza do governo petista envolve uma abordagem de sua relação com a proposta socialista que o orienta. E digo bem orienta no presente, pois os impasses que temos observado e as constantes referências do partido à sua vinculação socialista exibem manifestamente um problema não resolvido. A questão ganha ainda um contorno mais acentuado pelo fato de os críticos à atual orientação considerarem que Lula e seus companheiros governamentais são, supostamente, ex-socialistas. Outros, por sua vez, procuram manter a idéia de socialismo como uma idéia sagrada, que teria sido maculada por "traidores".

Os que defendem o "socialismo" como uma idéia que seria perene e imutável, sempre clamando por sua realização, são, paradoxalmente, os que mais se afastam de Marx. Estão, na verdade, ancorados numa idéia de tipo religioso, que seria religiosamente sempre a mesma, imune à sua realização e às provas empíricas e históricas de sua realização. Para Marx, a natureza de uma coisa se definia por seu próprio processo. No caso, o socialismo seria a idéia e sua realização, o processo conduzindo de uma à outra revelando a sua própria natureza. Logo, o único procedimento adequado seria o de testar uma idéia por seu processo de realização, em que teríamos, por assim dizer, a prova de sua validade. Desvincular a idéia de sua realização seria um procedimento dogmático, que se afastaria de todo critério de cientificidade.

Para efeitos desta análise não considerarei a social-democracia como uma forma de socialismo, embora pudesse fazê-lo, pois os seus fundadores e os que se proclamam dessa posição reivindicam tal filiação. A razão é simples. Historicamente, os social-democratas foram considerados "renegados", "traidores" do verdadeiro socialismo, tendo sido relegados à categoria depreciativa dos "reformistas". No Brasil, são considerados "neoliberais" pelos petistas e pelos grupos mais à esquerda, como o PSOL. Em suma, seriam considerados de "direita", apesar de os tucanos se dizerem de "esquerda". Este imbróglio, aliás, explica boa parte das dificuldades vividas pelo País, impossibilitando um diálogo, que não seja de surdos, entre o PT e o PSDB.

O socialismo, lá onde se realizou, terminou se mostrando um dos regimes políticos mais desumanos da história. A única dificuldade seria encontrar o exemplo mais aterrador, embora os ícones maiores sejam a União Soviética sob Stalin, o Camboja sob Pol Pot e a China sob Mao. Os assassinatos em massa, a supressão total das liberdades, inclusive as mais elementares, a onipresença do Estado, a miséria de boa parte de suas populações, a mentira como forma de governo, um partido que se dizia representante da verdade e a servidão de todos ao Estado-partido foram algumas de suas características mais visíveis. Em maior ou menor grau, essas características se fizeram presentes nos países ditos do "socialismo real", como os regimes estabelecidos na ex-Europa Oriental. Seu êmulo mais saliente na América Latina foi Cuba, que até hoje permanece como um regime anacrônico e liberticida.

Temos, agora, uma nova safra de repetidores, sendo o mais estridente deles Hugo Chávez, na Venezuela, procurando recriar no continente a mesma barbárie padecida por aqueles povos. O esquema ideológico, aliás, é o mesmo, em nome da "generosidade" e da "justiça", contra o "imperialismo", atraem as mentes incautas e dogmáticas, que estão ávidas por uma nova forma de servidão. No Brasil, ela já surge sob a forma da servidão do pensamento, envolvendo intelectuais, políticos e professores, que têm dificuldades manifestas na convivência com o espírito livre e crítico. Se pior não aconteceu, foi pela resistência encontrada pela proposta socialista, apesar de um exterminador da liberdade como Che Guevara ser entre nós um ídolo romântico. O seu "romance" foi uma das maiores farsas da história.

O PT jamais fez um balanço sério dessa história, embora em seu site e em suas publicações pululem artigos a respeito. Os que aparentemente criticam a experiência de realização do socialismo o fazem a partir de uma idéia religiosa que, por um mistério teológico, teria sido mantida válida apesar de suas vicissitudes históricas. Vivendo com abstrações, que não oferecem nenhum tipo de orientação para a tarefa específica de governar, terminaram caindo numa outra forma de realização socialista, cujos resultados se fazem sentir na corrupção, no aparelhamento partidário do Estado e no desvio de recursos públicos, cujo emblema é, hoje, o "mensalão". Observe-se que o "discurso socialista" foi particularmente apropriado para o exercício da oposição, uma vez que, aí, bastava recorrer aos chavões marxistas da "justiça" e da "luta de classes", repetindo os processos que desembocaram, no século passado, no "totalitarismo" e na "democracia totalitária".

Nesse contexto, não deveriam causar estranheza processos como os que desembocaram no mensalão e em outros escândalos do mesmo tipo. Eles constituem uma outra vertente do socialismo quando os seus representantes não conseguem impor uma democracia totalitária e se vêem confrontados a governar uma sociedade baseada na propriedade privada, na economia de mercado, no Estado de Direito e na defesa das liberdades. Oscilam os seus governantes entre a "democracia totalitária", numa proposta presente nos ditos "movimentos sociais" e em seus apoios no PT, no PSOL e no PCdoB, traduzindo-se em Ministérios ocupados por esses grupos e correntes, e uma espécie de integração que fingem abominar e se torna visível no desvio de recursos públicos. Como desconhecem a natureza democrática das sociedades que verdadeiramente realizaram o capitalismo, como os países europeus e os EUA, continuam vivendo na desorientação dos que se recusam a pensar a história e a si mesmos.

Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na UFRGS

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