Friday, June 27, 2008

ESSE MUNDO CHAMADO JOÃO by Daniel Piza


O ano de 1956 foi marcante para o Brasil. Foi o ano em que Juscelino Kubitschek tomou posse e Oscar Niemeyer fez seu primeiro prédio em Brasília; em que o movimento concretista despontou em São Paulo, cinco anos depois da exposição do escultor suíço Max Bill na Bienal de Arte; em que João Cabral de Melo Neto publicou Duas Águas, volume que continha os inéditos Uma Faca só Lâmina e Morte e Vida Severina, e Clarice Lispector terminou seu romance A Maçã no Escuro; em que Tom Jobim começou a compor as canções de Orfeu da Conceição com o poeta, crítico e diplomata Vinicius de Moraes; em que Pelé, com apenas 15 anos, iniciou sua carreira no Santos; e em que muitos mais eventos ajudariam a dissipar a modorra pessimista cujo maior sintoma tinha sido o suicídio de Getúlio Vargas em 1954. Porém, 1956 seria, acima de tudo, o “annus mirabilis” de João Guimarães Rosa, com a publicação em janeiro de Corpo de Baile e em maio de Grande Sertão: Veredas, este sua obra-prima, a obra-prima da literatura brasileira no século XX.

Guimarães Rosa, que nasceu em 27 de junho de 1908, cerca de três meses antes da morte de Machado de Assis, e morreria em 19 de novembro de 1967, havia dez anos não publicava livro nenhum. Mas isso nada queria dizer. Ou melhor, queria dizer que ele estava trabalhando muito, nas sete novelas que compõem Corpo de Baile e no monumental romance de mais de 600 páginas Grande Sertão: Veredas. Afinal, em Sagarana (1946) havia conscientemente atingido a voz que desejava para sua literatura, uma dicção de fábula crítica que mescla o regional e o universal. Devemos, portanto, comemorar também os 60 anos de Sagarana, livro aclamado que Rosa também levara dez anos para publicar desde que escreveu seus primeiros contos. Antes dele, lançara apenas Magma, em 1936, coletânea premiada de poemas que, no entanto, lida hoje, revela apenas o quanto sua prosa é que liberou sua poesia.

Naquele decênio a vida de Rosa foi agitada. Diplomata, foi nomeado chefe de gabinete do ministro João Neves da Fontoura em 1946 e enviado a Paris como membro da delegação à Conferência de Paz, que decidiria o mapa geopolítico depois da Segunda Guerra. Em 1948, foi enviado à Conferência Panamericana em Bogotá, a qual traria importantes avanços na legislação sobre direitos humanos e políticos. Em seguida voltaria a Paris como primeiro secretário e conselheiro da embaixada, ficando lá até 1951, quando novamente se estabeleceu no gabinete de Fontoura no Rio de Janeiro. Mas a preocupação principal de Rosa era com a literatura. Ainda quando estudante de Medicina em Belo Horizonte, na segunda metade dos anos 20, passava boa parte do tempo escrevendo contos, alguns dos quais enviou à revista O Cruzeiro e foram premiados. Depois, soldado na Revolução Constitucionalista de 1932 e oficial-médico da infantaria em Barbacena, também não desperdiçava tempo livre e escrevia seus contos e poemas. Além disso, aprender línguas era seu maior prazer.

A decisão de concorrer ao Itamarati em 1934, portanto, fazia sentido. Rosa, que passou em segundo lugar, falava fluentemente inglês, francês, espanhol, italiano e alemão, além de ler em latim e grego. (Mais tarde, aprendeu a ler também em russo, para ler Dostoievski; em chinês, para ler Confúcio; em árabe, para ler As Mil e Uma Noites; em dinamarquês, para ler Kierkegaard; e outras.) O conhecimento da língua e da literatura alemãs – de Goethe, Thomas Mann, Robert Musil, Kafka, Rilke, Freud – teria a chance de aprimorar em Hamburgo, seu primeiro posto no exterior, como cônsul-adjunto, a partir de 1938. Em 1942, quando Getúlio Vargas se bandeou para o outro lado e o Brasil rompeu com a Alemanha, Rosa, que ajudou a fuga de alguns judeus, chegou a ficar um período internado em Baden-Baden, ao lado do pintor Cícero Dias. No mesmo ano voltou ao Brasil e foi enviado a Bogotá como secretário da embaixada. Lá seguiria até a nomeação por Fontoura.

Numa conversa com o crítico Günter Lorenz, em 1965, Rosa chamaria essa sucessão de carreiras como um paradoxo: “Como médico, conheci o valor místico do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da proximidade da morte”. Quanto ao diplomata, definiu como “sonhador” que tenta consertar o que os políticos estragaram. Rosa disse mais: disse que esses valores constituem a espinha dorsal de Grande Sertão. Foram as experiências que formaram seu “mundo interior”. Mas acrescentou: “Também configuram meu mundo a diplomacia, o trato com cavalos, vacas, religiões e idiomas”. Diante dos comentários de Lorenz sobre seu dom para os idiomas, Rosa preferiu a ênfase nos cavalos e nas vacas. “Minha casa é um museu de quadros de vacas e cavalos. Quem lida com eles aprende muito para sua vida e a vida dos outros.” E contou que, quando ouvia alguém narrar uma tragédia, dizia: “Se olhares nos olhos de um cavalo, verás muito da tristeza do mundo”. A erudição de Rosa ia dos clássicos do português arcaico ou da literatura persa aos cavalos e às vacas – e de tudo ele aprendia alguma coisa.

Um momento marcante na vida de Rosa, que dizia que um homem não deve separar biografia e obra, foi uma viagem de dez dias pelo norte mineiro em 1952, acompanhando uma vaquejada nas imediações do rio São Francisco, onde anotou cantos, anedotas, prosódias, nomes da fauna e da flora e verificou de novo que o “homem do sertão” – expressão que preferia a “sertanejo” – é um “fabulista por natureza”. Rosa se dizia um homem do sertão, “meio vaqueiro”, pelo mesmo motivo. Sua maior ambição era conjugar poesia e realidade, e foi nas sagas e lendas – poemas escritos pela vida, não por técnicas ortodoxas – que encontrou seu material criativo. Pelo mesmo motivo dizia não ser um romancista, mas um autor de contos, de histórias morais, de aventuras com implicações metafísicas. Mesmo Grande Sertão, afirmava, é um conto, ou uma fusão deles. Com isso, estava querendo dizer que não era um ficcionista preocupado em descrever costumes e cotidianos, preso como um Zola ao que é contingente, efêmero, superficial.

Na sua definição de homem do sertão, assim, cabem muitos exemplos: Goethe, Dostoievski, Tolstoi, Balzac e Flaubert “nasceram no sertão”. E por quê? Porque conhecem os vazios da alma, os descampados do mundo, e são, no fundo, solitários. “O sertão é o terreno da eternidade, da solidão”, diz ele. “O sertão é dentro da gente.” Em outra passagem: “Este pequeno mundo do sertão, este mundo original e cheio de contrastes, é para mim o símbolo, o modelo de meu universo.” É no sertão que se depara abertamente com os paradoxos desse universo, com seus mistérios traduzidos em realidade. E isso se manifesta no uso da língua: “O idioma é a única porta para o infinito”; “Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço do infinito”; “Tudo é a ponta de um mistério”; “Ah, a dualidade das palavras!”. A própria existência da palavra – signo e coisa ao mesmo tempo – é paradoxal. E por isso cada uma delas, como recomendava nas cartas a seus tradutores Curt Meyer-Clason e Edoardo Bizzarri, deve trazer “algo de meditação ou aventura”. Tal como no homem do sertão, ação e especulação se mesclam, se confundem, se enriquecem mutuamente.

É importante notar que Rosa também diz que Riobaldo não pode ser confundido com Fausto e Raskolnikov, embora Goethe e Dostoievski sejam sertanistas. “Riobaldo é mundano demais para ser místico, místico demais para ser Fausto.” Sobre Raskolnikov, disse que Riobaldo não é culpado como ele, embora tenha uma culpa a expiar. Assim, o sertão é universal entre grandes escritores, mas cada um tem sua expressão. O sertão de Rosa – o sertão dos “gerais”, dos buritis e vaqueiros, do rio São Francisco, na fronteira entre cerrado e semi-árido – é peculiar. Nele o escritor vê outro modelo de universo, não fundado sobre a oposição entre misticismo e mundanidade, tampouco entregue ao sentimento de culpa. É um sertão que, como o jacaré ou o pai do conto A Terceira Margem do Rio, navega “de meio a meio”, entre duas margens, para tentar encontrar a felicidade na solidão.

Rosa chamou Corpo de Baile de um “ciclo de novelas”. Por isso elas ganharam um volume só quando do seu lançamento em janeiro de 1956. A partir da terceira edição, em 1964, ele foi desdobrado em três títulos: Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá, no Pinhém e Noites do Sertão. O que os harmoniza é um tom mais lírico e afetivo do que se encontrara em Sagarana (especialmente em A Hora e Vez de Augusto Matraga, seu conto mais importante) e se encontraria em Grande Sertão. Manuelzão e Miguilim, por exemplo, tem Campo Geral, chamado de “poema” pelo autor: a história da infância “triste-contente” de Miguilim, a qual tem óbvios elementos autobiográficos como a famosa cena em que o menino, míope, põe os óculos e passa a descobrir um mundo bem mais nítido, a exemplo do ocorrido com João na Cordisburgo (palavra que, roseamente, contém “coração” e “cidade”, a simbolizar os paradoxos de sua literatura) onde viveu até os dez anos.

Em Noites do Sertão há cantos de amor e de natureza que ainda são subvalorizados pela crítica. Veja como Rosa descreve o vôo de um picapau em Buriti, uma das duas histórias (a outra é Dão-Lalalão): “passava um picapau-da-cabeça-vermelha, em seu vôo de arranco: que tatala, dando impulso ao corpo, com abas asas, ganha velocidade e altura, e plana, e perde-as, de novo, e se dá novo ímpeto, se recobra, bate e solta, bate e solta, parece uma diástole e uma sístole – um coração na mão –; já atravessou o mundo”. Não é à toa que o título do volume original nos faz pensar numa dança de palavras.

Já O Recado do Morro, em No Urubuquaquá, no Pinhém, tem um enredo simples e forte, sobre um homem, Pedro Orósio, o Pê-Boi, que durante a expedição de um naturalista alemão pelo sertão profundo é avisado de que será vítima de uma emboscada de traidores. Mas são curiosas as maneiras pelas quais lhe chega o alerta. Um velho eremita, Gorgulho, diz ter recebido do Morro da Garça (nomes que sugerem uma associação entre solidão, fala, orgulho e graça) o recado que transmite a mensageiros como o menino Joãozezim e o louco Nominedômine. Ele também passa por uma cantiga de rua e pela balada do poeta Laudelim, a qual Pê-Boi, alegre e bêbado, começa a cantar na festa que seria a da reconciliação. O recado de Rosa é claro: é pelo espectro da arte, da intuição e da natureza que vem a preservação da vida. Como ele disse a Lorenz: “O amor é sempre ilógico, mas cada crime é cometido segundo as leis da lógica”. Isso não significa, porém, que Rosa defendesse o irracionalismo. Como sugere a novela, ele queria uma parceria entre lógica e música, para que o homem não fizesse do raciocínio uma arma de desumanidade.

É por aí também que se deve ler Grande Sertão: Veredas, publicado em maio de 1956. Muitas pessoas têm dificuldade com o livro, pelo tamanho e pela linguagem. O melhor a fazer é, primeiro, passar por Sagarana e por pelo menos algumas histórias de Corpo de Baile, como as citadas. Depois, ao chegar a Grande Sertão, é persistir. Como toda poesia, a vontade de ler em voz alta é grande; tente com um sotaque levemente amineirado e um ritmo mais acelerado que o normal, e assim você achará a prosódia. A preocupação de Rosa com a oralidade é enorme, embora o uso de alguns sinais gráficos, com destaque para os dois pontos, possa às vezes não parecer. Não se preocupe, nessa leitura inicial, em entender toda expressão que desconhece. Com isso, verá que o texto flui e muito – com uma inesgotável oferenda de cenas, personagens, sons, imagens e pensamentos.

A narrativa toda é uma fala, as reminiscências de Riobaldo contadas por ele como uma série de causos a um interlocutor não identificado. Ele conta como pertenceu a bandos de jagunços e chegou a ser chefe, conhecido pelos outros como “Lagarta de Fogo” por sua pontaria certeira. Aí conhecemos personagens como Zé Bebelo, que o apadrinha, Hermógenes, que encarna o diabo, e Joca Ramiro, homem “de três alturas”. E ouvimos sua história com Reinaldo, filho de Ramiro, que deseja vingar o pai. Naquele mundo em que os homens se dividem entre ser jagunços e padres, e em que é preciso ter “dura nuca e mão quadrada” para sobreviver, Riobaldo narra sua atração física por Reinaldo, sem saber que na verdade se trata de uma moça, Diadorim. Este é o núcleo dramático da história.

Essa história já foi analisada por críticos de todas as vertentes em paralelo com outras de vários autores, como Goethe e Joyce (de quem Rosa não gostava, por ser “cerebral” demais), mas há uma aproximação subestimada com as tragédias gregas. Afinal, Riobaldo é como Édipo, ignorante em seu desejo, e só verá a verdade depois de uma catástrofe – a morte de Diadorim em luta com Hermógenes. E ela é como uma Electra, obrigada por dever filial a cumprir um código social (o pai anunciou seu nascimento como de um filho varão, portanto destinado a sucedê-lo no comando) e a esconder seu sentimento amoroso. Outros elementos – como o episódio do menino que é confundido com macaco e comido pelos jagunços no Suçuarão, o deserto que embaça a visão e se parece com o Tártaro, o inferno dos gregos – remetem diretamente ao drama clássico e a suas peripécias.

Riobaldo, ao mesmo tempo, é um protagonista moderno, em cujo fluxo de consciência somos mergulhados. Seu nome já indica a contradição do sertão, entre rio e vazio, assim como Diadorim ressoa a dilema, dicotomia, e a nome de pássaro, sempre prestes a voar. “Vaqueiro pode laçar o lugar do ar?”, pergunta Riobaldo. Sem conseguir capturar a natureza do que sente, ele é “o homem feito sertão”, na expressão de Rosa a Lorenz. E nesse sertão o diabo está “na rua, no meio do redemunho”, e não num plano superior ou inferior. Em Rosa tudo se mistura: infinito e circunstancial, cheio e vazio, interior e exterior, deus e diabo, erudito e popular, poesia e prosa, universal e local, cerebral e cordial, meditação e aventura. É interessante, por isso mesmo, notar que ele recusou o rótulo de “realismo mágico” ou “fantástico”, aplicado nos anos 60 a outros grandes autores latino-americanos como Alejo Carpentier, Gabriel García Márquez ou Mario Vargas Llosa. Não há em sua literatura a intervenção de espíritos reencarnados. Ele é místico, não esotérico, e místico de um tipo especial, de uma “metafísica particular”.

Essa metafísica particular, para ele, se cria a partir de uma única coisa: a língua. Não se confunda com linguagem, à maneira de seus leitores concretistas e formalistas. Rosa quer a língua viva, rica, em transformação contínua, não um conjunto de regras; um processo, não um procedimento. E, ao mesmo tempo que diz que a língua brasileira (a língua portuguesa como praticada no Brasil) lhe interessa por não ser saturada e que a quer purificar, incorpora recursos dos diversos outros idiomas que dominava. Para ele, à maneira de um Heidegger (mas sem as conseqüências doutrinárias de sua filosofia), cada idioma tem uma verdade interior, que só ele mesmo pode alcançar, e portanto é intraduzível. Para ajudar o idioma brasileiro a revelar sua verdade interior, sua “brasilidade” – indefinível, porém inconfundível –, Rosa pegou emprestados recursos dos outros, principalmente do alemão e do grego (palavras compostas, substantivação), para melhor uso das riquezas etimológicas de sua própria língua. É como se o português fosse maleável ao máximo.

Daí a mescla de sons maviosos com sons estranhos em sua prosa; sua capacidade de ir dos diminutivos mais afetivos (passarim) aos polissílabos mais sofisticados (alumbramento); seu gosto por adjetivos em que o som remete ao sentido (resvaloso) e por substantivos que derivam de verbo (rinchar); seu uso de advérbios, sem medo da extensão (pertencidamente), ao lado de expressões populares (“arre, o senhor mire e veja”) e proverbiais (“Tudo foi um ão e um cão”); seu emprego recorrente de palavras que afirmam pela negativa e vice-versa (deslembra); suas definições metafóricas, extraídas de exemplos da natureza, para sentimentos como o amor (“o sol entrado”); o índice maior de consoantes (pralaprá) e conectivos (“Quê que quer, ele era mais forte!”) em seu texto; a alternância de períodos longos e curtos. Ele explora todas as possibilidades da língua, ou melhor, ele as expande, com uma determinação que se pode dizer fundadora, embora – num paradoxo que ele mesmo apreciaria – calcada em suas origens mais antigas. O arcaico e o moderno, eis mais uma mistura roseana. “Acho que o sentir da gente volteia, mas em certos modos.”

É importante notar que essa determinação de Rosa pode, sim, ser associada à sua visão de Brasil. Para ele, Riobaldo era um símbolo do país, de sua eterna indefinição entre pólos, e no entanto dessa mesma indefinição é que poderia nascer a felicidade. Uma vez expiada sua culpa – a suposta culpa de ter feito pacto com um diabo que não existe –, ele goza de uma tranqüilidade, como diz ao interlocutor, e nisso está a diferença para com as tragédias gregas. O fato é que, para entender isso, precisou passar por provações e frustrações como as que passou. Só haveria felicidade na solidão, na prudência que nasce do coração e impede que o homem perca a sinceridade e a paz. Por isso mesmo Rosa não gostava que o chamassem de barroco, pois o sentido de sua aspiração não é para cima, não vai na direção de uma redenção. “O diabo não existe, por isso ele é tão forte” era seu provérbio sertanejo favorito. Riobaldo, diz ele, está além do bem e do mal no momento em que narra sua história.

Essa noção do que seria o Brasil para Rosa, a propósito, andou causando polêmica nos meios acadêmicos, simbolizada pela diferença entre os estudos recentes de Willi Bolle (grandesertão.Br) e Luiz Roncari (O Brasil de Rosa). Para uns, Rosa bebeu na fonte de Euclides da Cunha (Os Sertões) e descreveu um mundo atrasado, subjugado ao troca-troca entre oligarquias por meio da violência e da pobreza; para outros, ele defendeu a sentimentalidade desse mundo em face de uma civilização técnica, bélica, em que o afeto é reprimido. Rosa fez as duas coisas. Nesse sentido, tinha uma visão parecida com a de Machado de Assis – e não por acaso ambos escreveram um conto com o mesmo nome, O Espelho, onde fato e fantasia se confundem –, só que num registro otimista, diferente do que tinha o autor de Brás Cubas. O jogo de espelhos entre contrários, a percepção de que a realidade não pode ser reduzida a polarizações como corpo versus alma, é comum a ambos; mas em Rosa, num estado de espírito característico daquele 1956, dessa condição ambígua do brasileiro é que poderia vir um futuro grandioso. O estado atual do Brasil, 50 anos depois, parece sugerir que Machado estava mais perto da verdade ao mostrar que o preço dessa eterna indefinição é a sucessão de esperanças mal fundamentadas.

Aí está, porém, o grande legado estético de Rosa. Suas idéias místicas sobre o cosmos e sua crença no Brasil país-do-futuro jamais aprisionaram sua arte, assim como o dito pessimismo de Machado não o impediu de liberar humor e informalidade característicos em seus textos. Isso porque Rosa, como Machado, não via na literatura uma função ideológica. Seu antimodelo eram autores como Jorge Amado ou Zola. “A política é desumana”, disse ele a Lorenz, “porque dá ao homem o mesmo valor que uma vírgula em uma conta.” E sobre o naturalista francês: “A tragédia de Zola consistiu em que sua linguagem não podia caminhar no ritmo de sua consciência”. Daí se seguiu um recado bem atual: “Hoje em dia (...) a maldição dos costumes é notada e os autores aceitam sem crítica a chamada linguagem corrente”.

A literatura de João Guimarães Rosa olha por baixo da linguagem corrente, da superfície dos costumes, para encontrar, como nos “rios profundos”, as idéias e os sofrimentos eternos dos homens. O que faz de sua metafísica uma arte duradoura é que seja particular, solitária, intransferível. Cinqüenta anos são poucos para dar conta de tal eternidade.

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