De oprimidos e opressores
Fiz ontem, vejam lá, algumas considerações sobre a situação africana. E recebi um comentário interessante. Na sua crueza, não é muito diferente do que pensa de seus adversários uma Marilena Chaui, por exemplo, embora ela busque colocar um pouco mais de recheio filosófico em seu rocambole filototalitário. Lá vai a questão: “Reinaldo, por que [ele acentuou esse “que”, e eu já dei essa aula...] você fica sempre do lado dos opressores e não dos oprimidos? Isso é ser de direita, ou você quer ser do contra? Explica pra nós vai.”
Se eu tivesse de escolher uma dessas duas opções ou ir para a forca, eu diria que é porque “quero ser do contra” — de fato, tem mais a ver com meu temperamento. Mas depois me ocorre que só se é “do contra”, nesta acepção que designa o sujeito que sempre reclama, quando estão plasmados consensos. Como esses consensos, especialmente na esfera dos valores morais e culturais, são de esquerda, então esse meu gosto pelo “contra” acaba assumindo, na geografia dada, uma característica que dizem ser “de direita”. Não sei se confundo o pobre leitor que fez a pergunta, mas o fato é que comecei o parágrafo para lhe dizer que sou do contra e concluo afirmando que, dados os consensos (e só nessa circunstância), sou tambem de direita.
Alguns tontinhos, especialmente alguns desafetos da mesma profissão, acreditam que, sei lá, aderi a uma moda que acho divertida. Moda? Somos quantos mesmo? Quatro? Cinco? Seis no máximo. A nossa multidão não lota uma Kombi. Mas volto à indagação do meu amigo. Não é verdade que eu esteja sempre do lado dos opressores — em causas recentes ou passadas. Nunca defendi os fascistas, mas os meus “oprimidos” não eram os comunistas. Se leio sobre Roma Antiga, por exemplo, não é que eu hostilize os povos dominados — é que acredito firmemente que a expansão da cultura latina foi um bem para a humanidade.
Se eu pudesse ter escolhido, caro leitor, talvez tivesse impedido a expansão mercantil e as grandes navegações dos séculos 15 e 16. Os europeus teriam ficado quietinhos lá no canto deles; os nossos nativos passariam a eternidade batendo o pé no chão para acordar os mortos; os africanos continuariam lá tocando a sua vidinha buliçosa, cheia de cultos animistas — sobre a expansão do Islã, ainda não decidi se teria interferido ou não: conhecendo-me um pouco, acho que sim. E os chineses? Bem, chineses, indianos, japoneses protegeriam de olhares curiosos sua sabedoria milenar, cheia de significados para... chineses, indianos e japoneses. Mas o mundo não se fez assim, entende? Não se fez.
O que é estar sempre “do lado do opressor”? É não olhar com os olhos da moral contemporânea a expansão mercantil, por exemplo? Se os povos pré-colombianos tivessem dominado uma técnica que lhes permitisse sair ao mar, colonizando outras terras, o mundo seria mais justo? Tenho sólidas razões para duvidar disso. Como rejeito essa conversa mole de “Mãe África”. Os negros escravos dos brancos portugueses e brasileiros não sofreram mais aqui do que teriam sofrido nas mãos de seus senhores. Nego, com isso, os horrores da escravidão? De jeito nenhum! Eu apenas demonstro que as noções contemporâneas que temos de igualdade e de justiça são uma construção deste tempo. E cumpre que façamos o melhor do que fizeram de nós, em vez de tentar fazer a história voltar para trás.
Mas sua pergunta não é de todo descabida. Eu, com efeito, prefiro as reformas às revoluções; prefiro os processos de construção da igualdade, preservando o que tem de ser preservado, às rupturas, que, não raro, degeneram em violência, morte e novos horrores, mas aí com a chancela moral da “libertação”. Poucos regimes foram tão essencialmente autoritários, violentos e homicidas quanto a vigência do Terror jacobino, durante a Revolução Francesa. E poucos discursos foram tão humanistas quanto o daqueles revolucionários. Fascismo e socialismo, no século passado, falavam em nome da libertação.
Talvez eu seja, contra a minha própria inclinação, um otimista e acredite, veja que coisa, no progresso, dadas certas precondições, como democracia representativa, por exemplo. E tenho algumas convicções. Não aposto em iniciativas que contrariem a economia de mercado porque acho que ela está mais bem-adaptada a alguma coisa que chamo de “espírito humano”, à falta de uma definição mais precisa. O cérebro desse macaco sem pêlo, que somos nós, impele-nos, por alguma razão, à competição e à busca do novo. Falharam todas as tentativas de aprisioná-lo. Por que os MSTs da vida e sua pantomima revolucionária me entediam? Porque sei que eles vão continuar a consumir alguns bilhões de recursos públicos para... nada! Ou, sim, para alguma coisa: para continuar a alimentar a própria causa. Acredito na “tal luta dos oprimidos”? Acredito, por exemplo, em quem se organiza para a formalização da mão-de-obra empregada pela agroindústria. O MST quer outra coisa: uma espécie de éden comunista, já testado e rejeitado pela história.
Veja que coisa, leitor: considero que João Pedro Stédile é, ele sim, um opressor daquela gente que ele mobiliza. Até porque o seu modelo não prevê que os “sem-terra” recebam o seu quinhão para, sei lá, cuidar da vida e progredir como seres autônomos: eles passam a pertencer a uma categoria que há de persegui-los até a morte: serão para sempre assentados sem-terra, devendo vassalagem ao seu suserano: o MST. Quem é o opressor dessa história?
E arremato lembrando que o “discurso do oprimido”, como uma visão de mundo, é um contradição dada pelos próprios termos. O oprimido de verdade está esmagado pelo silêncio. Se o sujeito é dotado de uma fala organizada, então já é um ator político. E se, como tal, reivindica, ainda assim, a condição de um oprimido, ele já começou a construir o discurso do opressor — e do pior deles: aquele que busca o direito histórico ao uso legítimo da violência. Não se esqueçam de que na base do fascismo, por exemplo, estava um recalque. Diria mesmo que ele foi a explosão violenta do recalcado.
Ontem, os sem-terra se organizaram em Parauapebas, no Pará, para tentar libertar na marra um dos seus que tinham sido preso. Era seu particular senso de justiça em ação. Foram reprimidos pela Polícia, os pobrezinhos. A poucos ocorre que eles estavam lá para oprimir o estado democrático e de direito, que não se construiu da noite para o dia.
Por Reinaldo Azevedo
Tuesday, July 08, 2008
Monday, July 07, 2008
Eles não abrem mão do seu oprimido by Reinaldo Azevedo |
Certo! Lembrei que os países ricos não podem ser responsabilizados pelas ditaduras africanas; que elas matam o povo de fome muito mais do que qualquer crise de grãos. Grande revolta nas hostes “africanófilas” da elite esquerdista brasileira, a muitos milhares de distância dos conflitos de negros contra negros daquele continente — no Brasil é que uma parte dos negros acha que os inimigos são os brancos... Na África, ninguém dá bola para a cor da pele.
Também há os que estão nervosos porque afirmei que parte da crise de alimentos — se tem mesmo origem no etanol do milho — deve ser debitada na conta dos escatológicos do aquecimento global. Ué... O mundo não iria derreter? Não se prometeu o apocalipse? Então: tentaram evitar a catástrofe. Não adianta negar: o biocombustível mereceu o selo verde, e essa é uma das raízes do desequilíbrio.
Não seria a primeira vez que as escatologias amigas da humanidade, do bem, do belo e do justo provocariam desastres. Isso tem sido mais ou menos uma constante. Jamais se vai admitir, claro, mas grande parte do desastre africano se deve à forma como se deu a independência dos países subsaarianos: guerras de libertação, a maioria hostilizando os descendentes dos colonizadores. Resultado: junto com a independência, vieram as ditaduras, a hostilidade à produção e uma queda brutal na qualidade de vida.
A despeito das dificuldades que enfrenta, da pobreza, qual é o único país com chances reais de alcançar um padrão civilizado num horizonte que podemos alcançar? A África do Sul. O fim do odioso regime do apartheid, por contraste, deixou como herança a democracia que existia para os brancos: e ela se universalizou. O país está longe de ser um paraíso, mas também está longe do inferno dos seus vizinhos. Uganda é outro que vem saindo do atoleiro — o padrão de comparação é sempre o entorno —, e também tem conseguido tal resultado, vejam só, com a adesão, bastante recente, ao regime democrático. Vai durar? Vamos ver.
Mas ok. Conforta a moral militante a idéia de que os africanos são vítimas de europeus e de americanos desalmados? Regozijem-se. Essa gente quer um oprimido pra chamar de seu.
Também há os que estão nervosos porque afirmei que parte da crise de alimentos — se tem mesmo origem no etanol do milho — deve ser debitada na conta dos escatológicos do aquecimento global. Ué... O mundo não iria derreter? Não se prometeu o apocalipse? Então: tentaram evitar a catástrofe. Não adianta negar: o biocombustível mereceu o selo verde, e essa é uma das raízes do desequilíbrio.
Não seria a primeira vez que as escatologias amigas da humanidade, do bem, do belo e do justo provocariam desastres. Isso tem sido mais ou menos uma constante. Jamais se vai admitir, claro, mas grande parte do desastre africano se deve à forma como se deu a independência dos países subsaarianos: guerras de libertação, a maioria hostilizando os descendentes dos colonizadores. Resultado: junto com a independência, vieram as ditaduras, a hostilidade à produção e uma queda brutal na qualidade de vida.
A despeito das dificuldades que enfrenta, da pobreza, qual é o único país com chances reais de alcançar um padrão civilizado num horizonte que podemos alcançar? A África do Sul. O fim do odioso regime do apartheid, por contraste, deixou como herança a democracia que existia para os brancos: e ela se universalizou. O país está longe de ser um paraíso, mas também está longe do inferno dos seus vizinhos. Uganda é outro que vem saindo do atoleiro — o padrão de comparação é sempre o entorno —, e também tem conseguido tal resultado, vejam só, com a adesão, bastante recente, ao regime democrático. Vai durar? Vamos ver.
Mas ok. Conforta a moral militante a idéia de que os africanos são vítimas de europeus e de americanos desalmados? Regozijem-se. Essa gente quer um oprimido pra chamar de seu.
Sunday, July 06, 2008
Pernil gordo by J.R. Guzzo
"Para cada vez mais gente, e com o incentivo cada vez maior do poder público, empresas como Vale, Alcoa e Cargill são vistas como um pernil gordo, de onde sempre se pode tirar uma fatia – e sempre em nome dos pobres. Não há notícia, até hoje, de nenhum benefício concreto que esse tipo de postura tenha trazido para eles. Em vez de se tornarem cidadãos, são incentivados a se tornar parasitas"
A Vale, a maior empresa mineradora do Brasil, está envolvida em mais um problema no Pará. É apenas o último de uma série que não dá o menor sinal de estar perto do fim – algo perfeitamente natural quando se leva em conta que os "movimentos sociais", sempre com apoio de alguma facção da burocracia oficial, descobriram há tempos que criar caso com empresas de grande porte, dinheiro em caixa e uma reputação internacional a defender é um excelente negócio no Brasil de hoje. O incentivo para quem opera nesse ramo é a idéia geral, cada vez mais aceita, de que empresas como a Vale vivem em situação de pecado; se fazem tanto sucesso é porque estão, de algum jeito, do lado do mal. Sempre há ótimas chances, assim, de sair levando vantagem numa disputa com elas. Como uma companhia que se dedica à extração de minérios, opera na Amazônia e ocupa tanta terra para suas atividades pode ter razão em alguma coisa, seja lá o que for? Se do outro lado do conflito estiverem pessoas pobres, ou descritas como tal, fica tudo mais fácil ainda. No pior dos casos, acaba saindo uma "negociação" e a empresa concorda em ceder isso ou aquilo para livrar-se do problema – até aparecer o próximo.
O episódio mais recente da coleção, segundo relato dos repórteres Eduardo Scolese e João Carlos Magalhães, da Folha de S.Paulo, refere-se a uma possível queixa do Incra, na qual a Vale é citada por ter comprado, entre 2003 e 2007, o direito de ocupar os lotes de 53 assentados num projeto de reforma agrária no interior do Pará – na área onde está investindo cerca de 2 bilhões de dólares para a implantação, já avançada, de uma mina de níquel. A empresa pagou aos assentados até 9.500 reais o alqueire, o triplo do preço de mercado. Na hora de fechar o negócio, não parece ter havido objeções; todos receberam seu dinheiro e deixaram a área. Mas uma parte dos vendedores, agora, diz que foi iludida e se arrepende da transação. Não está claro se pretendem devolver o dinheiro que lhes foi pago. Informa-se, apenas, que estão infelizes e que autoridades do Incra, de quem receberam os lotes, estão mais infelizes ainda – estudam, no momento, que tipo de providências poderiam tomar contra a Vale.
Segundo as normas em vigor, os assentados em projetos de reforma agrária não podem vender os lotes que receberam; na teoria, quem não quer mais a sua área tem de devolvê-la ao Incra, que a entregará, também na teoria, a um novo interessado. Na prática, é claro, vive acontecendo a venda de lotes por assentados que ficam com o dinheiro, vão embora e eventualmente recebem um novo pedaço de terra em outro lugar. É igualmente claro que fica tudo por isso mesmo – a menos que o comprador seja alguém como a Vale. Aí aparece uma oportunidade de ganho, em dinheiro ou em ideologia, e a coisa fica complicada. Complicada só para o comprador, naturalmente, pois o vendedor é pobre, e em sua condição de pobre nunca pode estar errado, segundo a melhor doutrina em vigor na máquina pública brasileira.
A Vale sustenta que não fez nada de ilegal: diz que o Incra acompanhou as transações diretamente, desde o começo, e que não pagou aos assentados pela propriedade da terra, mas sim a título de indenização pelas benfeitorias existentes nos lotes. O episódio, de uma forma ou de outra, acabará tendo o seu desfecho no devido tempo. A questão que fica, mais uma vez, é a crescente insegurança que tantas empresas enfrentam para tocar o seu negócio no Brasil atual, sobretudo em lugares como o Pará, onde os sinais da existência de leis na vida real vão se tornando a cada dia menos visíveis. Também ali, recentemente, outra empresa de mineração, a Alcoa, comprou uma área de mata nativa, vizinha ao local onde está instalando uma operação de beneficiamento de bauxita, para preservar o verde – e mostrar que a atividade industrial pode conviver com a defesa do ambiente. Má idéia. A mata foi invadida por sem-terra que derrubaram quase todas as árvores, na certeza de que destruir a propriedade de empresas como a Alcoa é hoje em dia um procedimento aceito como normal pela autoridade pública; faz parte da "dinâmica social". E a Alcoa? Se tiver sorte, não será multada pelo Ibama.
Empresas como Vale, Alcoa, Cargill (que há mais de um ano enfrenta todo tipo de dificuldade para operar um porto de exportação de soja em Santarém, também no Pará) e tantas outras não são consideradas como um fator de progresso num ambiente de miséria. Não se leva em conta que produzem renda, impostos, empregos e oportunidades, cumprem a legislação trabalhista e não operam com caixa dois. Para cada vez mais gente, e com o incentivo cada vez maior do poder público, são vistas como um pernil gordo, de onde sempre se pode tirar uma fatia – e sempre em nome dos pobres. Não há notícia, até hoje, de nenhum benefício concreto que esse tipo de postura tenha trazido para eles. Podem, aqui e ali, acabar levando uns trocados, mas sua vida não melhora em nada; em vez de se tornarem cidadãos, são incentivados a se tornar parasitas. Ganhar, mesmo, só ganham os profissionais do mercado da pobreza.
A Vale, a maior empresa mineradora do Brasil, está envolvida em mais um problema no Pará. É apenas o último de uma série que não dá o menor sinal de estar perto do fim – algo perfeitamente natural quando se leva em conta que os "movimentos sociais", sempre com apoio de alguma facção da burocracia oficial, descobriram há tempos que criar caso com empresas de grande porte, dinheiro em caixa e uma reputação internacional a defender é um excelente negócio no Brasil de hoje. O incentivo para quem opera nesse ramo é a idéia geral, cada vez mais aceita, de que empresas como a Vale vivem em situação de pecado; se fazem tanto sucesso é porque estão, de algum jeito, do lado do mal. Sempre há ótimas chances, assim, de sair levando vantagem numa disputa com elas. Como uma companhia que se dedica à extração de minérios, opera na Amazônia e ocupa tanta terra para suas atividades pode ter razão em alguma coisa, seja lá o que for? Se do outro lado do conflito estiverem pessoas pobres, ou descritas como tal, fica tudo mais fácil ainda. No pior dos casos, acaba saindo uma "negociação" e a empresa concorda em ceder isso ou aquilo para livrar-se do problema – até aparecer o próximo.
O episódio mais recente da coleção, segundo relato dos repórteres Eduardo Scolese e João Carlos Magalhães, da Folha de S.Paulo, refere-se a uma possível queixa do Incra, na qual a Vale é citada por ter comprado, entre 2003 e 2007, o direito de ocupar os lotes de 53 assentados num projeto de reforma agrária no interior do Pará – na área onde está investindo cerca de 2 bilhões de dólares para a implantação, já avançada, de uma mina de níquel. A empresa pagou aos assentados até 9.500 reais o alqueire, o triplo do preço de mercado. Na hora de fechar o negócio, não parece ter havido objeções; todos receberam seu dinheiro e deixaram a área. Mas uma parte dos vendedores, agora, diz que foi iludida e se arrepende da transação. Não está claro se pretendem devolver o dinheiro que lhes foi pago. Informa-se, apenas, que estão infelizes e que autoridades do Incra, de quem receberam os lotes, estão mais infelizes ainda – estudam, no momento, que tipo de providências poderiam tomar contra a Vale.
Segundo as normas em vigor, os assentados em projetos de reforma agrária não podem vender os lotes que receberam; na teoria, quem não quer mais a sua área tem de devolvê-la ao Incra, que a entregará, também na teoria, a um novo interessado. Na prática, é claro, vive acontecendo a venda de lotes por assentados que ficam com o dinheiro, vão embora e eventualmente recebem um novo pedaço de terra em outro lugar. É igualmente claro que fica tudo por isso mesmo – a menos que o comprador seja alguém como a Vale. Aí aparece uma oportunidade de ganho, em dinheiro ou em ideologia, e a coisa fica complicada. Complicada só para o comprador, naturalmente, pois o vendedor é pobre, e em sua condição de pobre nunca pode estar errado, segundo a melhor doutrina em vigor na máquina pública brasileira.
A Vale sustenta que não fez nada de ilegal: diz que o Incra acompanhou as transações diretamente, desde o começo, e que não pagou aos assentados pela propriedade da terra, mas sim a título de indenização pelas benfeitorias existentes nos lotes. O episódio, de uma forma ou de outra, acabará tendo o seu desfecho no devido tempo. A questão que fica, mais uma vez, é a crescente insegurança que tantas empresas enfrentam para tocar o seu negócio no Brasil atual, sobretudo em lugares como o Pará, onde os sinais da existência de leis na vida real vão se tornando a cada dia menos visíveis. Também ali, recentemente, outra empresa de mineração, a Alcoa, comprou uma área de mata nativa, vizinha ao local onde está instalando uma operação de beneficiamento de bauxita, para preservar o verde – e mostrar que a atividade industrial pode conviver com a defesa do ambiente. Má idéia. A mata foi invadida por sem-terra que derrubaram quase todas as árvores, na certeza de que destruir a propriedade de empresas como a Alcoa é hoje em dia um procedimento aceito como normal pela autoridade pública; faz parte da "dinâmica social". E a Alcoa? Se tiver sorte, não será multada pelo Ibama.
Empresas como Vale, Alcoa, Cargill (que há mais de um ano enfrenta todo tipo de dificuldade para operar um porto de exportação de soja em Santarém, também no Pará) e tantas outras não são consideradas como um fator de progresso num ambiente de miséria. Não se leva em conta que produzem renda, impostos, empregos e oportunidades, cumprem a legislação trabalhista e não operam com caixa dois. Para cada vez mais gente, e com o incentivo cada vez maior do poder público, são vistas como um pernil gordo, de onde sempre se pode tirar uma fatia – e sempre em nome dos pobres. Não há notícia, até hoje, de nenhum benefício concreto que esse tipo de postura tenha trazido para eles. Podem, aqui e ali, acabar levando uns trocados, mas sua vida não melhora em nada; em vez de se tornarem cidadãos, são incentivados a se tornar parasitas. Ganhar, mesmo, só ganham os profissionais do mercado da pobreza.
As Farc no papel do otário by Roberto Pompeu de Toledo
Roberto Pompeu de Toledo
A libertação de Ingrid Betancourt coroou o
fim de um resistente mito latino-americano
De Sierra Maestra a San José del Guaviare cumpriu-se um ciclo na história da América Latina. Em Sierra Maestra, no sul da ilha de Cuba, onde, na passagem do ano de 1956 para o de 1957, se juntou o pequeno grupo de seguidores de Fidel Castro para iniciar a luta contra a ditadura de Fulgencio Batista, nasceu o mito do guerrilheiro romântico, destinado a pairar sobre a vida do continente pelo próximo meio século. Em San José del Guaviare, localidade da Colômbia em cujas cercanias foram resgatados, na quarta-feira passada, Ingrid Betancourt e outros catorze reféns das Farc, o mito, já abalado por sucessivas derrotas e desgastado pela velhice e pelo descrédito, conheceu um fim humilhante. As Farc, sua última encarnação, perderam o cacife que lhes restava sem direito a um único tiro para lhes salvar a honra. Foram vencidas, como o caipira que cai no conto-do-vigário, pelo truque de um adversário mais esperto.
A imagem do guerrilheiro que desce da montanha com a promessa de um mundo novo foi muito ajudada pelo clima reinante à época em que surgiu em cena. As barbas de Fidel Castro dialogavam com os cabelos compridos dos Beatles. Na salada geral dos anos 60, não importava que uns tivessem um fuzil na mão e outros pregassem paz e amor, que uns mirassem num regime de força e outros se refestelassem na anarquia; eram todos partes de um sonho em que tudo parecia possível. Em contraste, ao falecer, no início do ano, o líder das Farc, Manuel Marulanda, já não podia ombrear sequer com o antigo ídolo do rock reduzido a cantor de churrascaria. Era pior: o cantor que perdera a voz, e mal dedilhava a guitarra desafinada. A Manuel Marulanda, el Tirofijo, segundo o apelido que tentava insuflar-lhe alguns trocados de prestígio, coube o destino cruel, para um guerreiro, de morrer na cama. Ao contrário de Che Guevara, não conheceu, nem conhecerá, a glória das camisetas e dos pôsteres.
O Muro de Berlim desabou, a Guerra Fria chegou ao fim, o capitalismo mostrou-se dono de muito mais que sete fôlegos. Não repisemos essas histórias. As causas pelas quais as Farc não encontraram o mesmo terreno favorável da guerrilha cubana são conhecidas. Fiquemos com a questão do mito. Na América Latina, tão mais dada à retórica do que à ação, tão mais tentada pela fantasia do que pela realidade, a noção de que um pequeno grupo de jovens, um ideal na cabeça, uma barba no queixo e um fuzil na mão, fosse capaz de reinaugurar o mundo sobreviveu a mais de uma geração. A derrota de Che Guevara na Bolívia não a arrefeceu, muito pelo contrário. Serviu de inspiração para movimentos guerrilheiros (muitas vezes degenerando em terrorismo) que floresceram da Venezuela ao Uruguai, da Nicarágua ao Chile, passando pela Argentina e pelo Brasil.
Um dos últimos, o Sendero Luminoso, do Peru, já exibia os sinais de fadiga que haveriam de culminar nas Farc: a prática do crime pelo crime, o casamento com o narcotráfico. A imagem do líder do Sendero, Abimael Guzmán, exibido numa jaula dentro da qual esperneava como um gorila e rugia como um urso, depois de preso e levado a julgamento, no começo dos anos 90, distanciava-se irremediavelmente do olhar romântico do Che, tal qual capturado na foto de Alberto Corda. Na etapa seguinte, os ativistas das Farc iriam merecer o epíteto infamante de narcoguerrilheiros. E em meses recentes destacaram-se como torturadores dados a manter seus seqüestrados presos a troncos de árvores.
As Farc cumpriram à perfeição o roteiro imaginado pelo cientista político americano Eric Hoffer: "Toda grande causa começa como um movimento, vira um negócio e finalmente degenera numa quadrilha". Ou melhor, até anteciparam a ordem prevista por Hoffer, na medida em que os ramos de negócio que abraçaram, o narcotráfico e o seqüestro, já se confundiam com atividades quadrilheiras. Não há mito que resista. A imagem que hoje comove o mundo não é a do guerrilheiro vencido, como, nos anos 60, a de Guevara morto. É a de Ingrid Betancourt, a vítima da guerrilha.
O arremate veio na forma como foram libertados os reféns, na semana passada. Na aurora do mito, esperta era a guerrilha, e os governos é que eram feitos de bobo. Os tupamaros, nos primeiros tempos, antes de o conflito com a ditadura uruguaia virar um torneio de sangue, eram especialistas em brincar de esconder com os agentes da repressão. Faziam uma manifestação-relâmpago em certo lugar e quando a polícia chegava estavam em outro. Assaltavam um banco e corriam para distribuir o dinheiro entre os pobres. Na operação de resgate da semana passada, agentes do governo colombiano fingiram-se de guerrilheiros e assim obtiveram a pacífica entrega dos reféns. Pode ser que a história não seja bem essa, e tenha envolvido o suborno de algum chefe ou chefete da guerrilha. Em qualquer caso, as Farc entraram de trouxas na história. É difícil, mas vá lá que o mito até possa ter resistido à degenerescência do ideal em negócio, ou do negócio em crime. Não pode resistir à fama de otário.
A libertação de Ingrid Betancourt coroou o
fim de um resistente mito latino-americano
De Sierra Maestra a San José del Guaviare cumpriu-se um ciclo na história da América Latina. Em Sierra Maestra, no sul da ilha de Cuba, onde, na passagem do ano de 1956 para o de 1957, se juntou o pequeno grupo de seguidores de Fidel Castro para iniciar a luta contra a ditadura de Fulgencio Batista, nasceu o mito do guerrilheiro romântico, destinado a pairar sobre a vida do continente pelo próximo meio século. Em San José del Guaviare, localidade da Colômbia em cujas cercanias foram resgatados, na quarta-feira passada, Ingrid Betancourt e outros catorze reféns das Farc, o mito, já abalado por sucessivas derrotas e desgastado pela velhice e pelo descrédito, conheceu um fim humilhante. As Farc, sua última encarnação, perderam o cacife que lhes restava sem direito a um único tiro para lhes salvar a honra. Foram vencidas, como o caipira que cai no conto-do-vigário, pelo truque de um adversário mais esperto.
A imagem do guerrilheiro que desce da montanha com a promessa de um mundo novo foi muito ajudada pelo clima reinante à época em que surgiu em cena. As barbas de Fidel Castro dialogavam com os cabelos compridos dos Beatles. Na salada geral dos anos 60, não importava que uns tivessem um fuzil na mão e outros pregassem paz e amor, que uns mirassem num regime de força e outros se refestelassem na anarquia; eram todos partes de um sonho em que tudo parecia possível. Em contraste, ao falecer, no início do ano, o líder das Farc, Manuel Marulanda, já não podia ombrear sequer com o antigo ídolo do rock reduzido a cantor de churrascaria. Era pior: o cantor que perdera a voz, e mal dedilhava a guitarra desafinada. A Manuel Marulanda, el Tirofijo, segundo o apelido que tentava insuflar-lhe alguns trocados de prestígio, coube o destino cruel, para um guerreiro, de morrer na cama. Ao contrário de Che Guevara, não conheceu, nem conhecerá, a glória das camisetas e dos pôsteres.
O Muro de Berlim desabou, a Guerra Fria chegou ao fim, o capitalismo mostrou-se dono de muito mais que sete fôlegos. Não repisemos essas histórias. As causas pelas quais as Farc não encontraram o mesmo terreno favorável da guerrilha cubana são conhecidas. Fiquemos com a questão do mito. Na América Latina, tão mais dada à retórica do que à ação, tão mais tentada pela fantasia do que pela realidade, a noção de que um pequeno grupo de jovens, um ideal na cabeça, uma barba no queixo e um fuzil na mão, fosse capaz de reinaugurar o mundo sobreviveu a mais de uma geração. A derrota de Che Guevara na Bolívia não a arrefeceu, muito pelo contrário. Serviu de inspiração para movimentos guerrilheiros (muitas vezes degenerando em terrorismo) que floresceram da Venezuela ao Uruguai, da Nicarágua ao Chile, passando pela Argentina e pelo Brasil.
Um dos últimos, o Sendero Luminoso, do Peru, já exibia os sinais de fadiga que haveriam de culminar nas Farc: a prática do crime pelo crime, o casamento com o narcotráfico. A imagem do líder do Sendero, Abimael Guzmán, exibido numa jaula dentro da qual esperneava como um gorila e rugia como um urso, depois de preso e levado a julgamento, no começo dos anos 90, distanciava-se irremediavelmente do olhar romântico do Che, tal qual capturado na foto de Alberto Corda. Na etapa seguinte, os ativistas das Farc iriam merecer o epíteto infamante de narcoguerrilheiros. E em meses recentes destacaram-se como torturadores dados a manter seus seqüestrados presos a troncos de árvores.
As Farc cumpriram à perfeição o roteiro imaginado pelo cientista político americano Eric Hoffer: "Toda grande causa começa como um movimento, vira um negócio e finalmente degenera numa quadrilha". Ou melhor, até anteciparam a ordem prevista por Hoffer, na medida em que os ramos de negócio que abraçaram, o narcotráfico e o seqüestro, já se confundiam com atividades quadrilheiras. Não há mito que resista. A imagem que hoje comove o mundo não é a do guerrilheiro vencido, como, nos anos 60, a de Guevara morto. É a de Ingrid Betancourt, a vítima da guerrilha.
O arremate veio na forma como foram libertados os reféns, na semana passada. Na aurora do mito, esperta era a guerrilha, e os governos é que eram feitos de bobo. Os tupamaros, nos primeiros tempos, antes de o conflito com a ditadura uruguaia virar um torneio de sangue, eram especialistas em brincar de esconder com os agentes da repressão. Faziam uma manifestação-relâmpago em certo lugar e quando a polícia chegava estavam em outro. Assaltavam um banco e corriam para distribuir o dinheiro entre os pobres. Na operação de resgate da semana passada, agentes do governo colombiano fingiram-se de guerrilheiros e assim obtiveram a pacífica entrega dos reféns. Pode ser que a história não seja bem essa, e tenha envolvido o suborno de algum chefe ou chefete da guerrilha. Em qualquer caso, as Farc entraram de trouxas na história. É difícil, mas vá lá que o mito até possa ter resistido à degenerescência do ideal em negócio, ou do negócio em crime. Não pode resistir à fama de otário.
POR QUE NÃO ME UFANO by Daniel Piza
POR QUE NÃO ME UFANO
Demoraram, mas enfim perceberam que os dados divulgados por institutos atrelados ao governo como o Ipea não são divulgados sem ''recortes'' interpretativos. É como se todos os índices positivos da atualidade fossem produto de fatores surgidos depois de 2003. Mas basta olhar com calma os dados de renda para ver que a média brasileira continua empacada na faixa dos últimos 15 anos. Veja também o caso da formalização de vagas de emprego medida pelo Caged, invariavelmente anunciada como ''criação de empregos''.
Já o índice oficial de inflação, o IPCA, continua muito abaixo de todos os outros, como o IPC e o IGP-M. Que a cesta básica tenha subido 52% em 12 meses é um alerta laranja, no mínimo. Mas o governo diz que não passa de ''alarmismo'', que foi a inflação mundial que subiu um pouco. Então tá: quando as coisas vão bem, o mérito é do governo, não da conjuntura internacional; quando vão mal, a culpa é do mundo. E tome juros altos!
Demoraram, mas enfim perceberam que os dados divulgados por institutos atrelados ao governo como o Ipea não são divulgados sem ''recortes'' interpretativos. É como se todos os índices positivos da atualidade fossem produto de fatores surgidos depois de 2003. Mas basta olhar com calma os dados de renda para ver que a média brasileira continua empacada na faixa dos últimos 15 anos. Veja também o caso da formalização de vagas de emprego medida pelo Caged, invariavelmente anunciada como ''criação de empregos''.
Já o índice oficial de inflação, o IPCA, continua muito abaixo de todos os outros, como o IPC e o IGP-M. Que a cesta básica tenha subido 52% em 12 meses é um alerta laranja, no mínimo. Mas o governo diz que não passa de ''alarmismo'', que foi a inflação mundial que subiu um pouco. Então tá: quando as coisas vão bem, o mérito é do governo, não da conjuntura internacional; quando vão mal, a culpa é do mundo. E tome juros altos!
"How Are We Doing?" The answer is "pretty good."



The American economy is in a rough patch. But the long-term trends are good—and there is a price to economic pessimism.
When a presidential election year collides with iffy economic times, the public’s view of the U.S. economy turns gloomy. Perspective shrinks in favor of short-term assessments that focus on such unpleasant realities as falling job counts, sluggish GDP growth, uncertain incomes, rising oil and food prices, subprime mortgage woes, and wobbly financial markets.
Taken together, it’s enough to shake our faith in American progress. The best path to reviving that faith lies in gaining some perspective— getting out of the short-term rut, casting off the blinders that focus us on what will turn out to be mere footnotes in a longer-term march of progress. Once we do that, we see the U.S. economy, a $14 trillion behemoth, is doing quite well, thank you very much.
So many data points add up to steady, continuing progress for average Americans—and there’s no reason not to expect the future will bring further progress (see examples in the charts above). Bad news will pop up from time to time, just as it has in every decade of American history. Some people will take the negatives—the hiccups on the long road to progress—for harbingers of worse times to come.
W. Michael Cox and Richard Alm of the Federal Reserve Bank of Dallas answer the question "How Are We Doing?" The answer is "pretty good."
Sobre lagartixas e dragões by GUSTAVO FRANCO

AS PESSOAS estão exageradamente assustadas com a inflação, a começar pelo ministro da Fazenda, e isso é muito bom.
Felizmente, exatos 14 anos depois do Plano Real, a memória do flagelo da hiperinflação permanece viva, ainda que embaçada. Sabe-se que foi uma tragédia, mas apenas os maiores de 32 anos tiveram a chance de ver, já maiores de idade, a criatura caminhar sobre território brasileiro. Na verdade, aqui esteve durante vários anos, quando foi alimentada por idéias de economistas heterodoxos, como estes que estão aboletados no Ipea, e tratada com banhos frios, feitiços e confiscos, às vezes mais danosos que o mal que a criatura nos causava.
A inflação acumulada em 12 meses até junho de 1994, medida pelo IPCA, atingiu 6.432,7%. Vale refletir sobre a grandeza desse número. Em junho de 1994, a inflação foi de 50% no mês, que equivalem a 12.875% anuais, ou cerca de 2% por dia útil. A meta de inflação para 2007 seria a inflação de um simples fim de semana, naqueles tempos loucos. Um feriadão já seria suficiente para estourar a meta.
Mas a criatura desapareceu em julho de 1994. No ano calendário de 1997, a inflação foi de 5,2%, e em 1998 chegamos a 1,6% para o ano inteiro, nossa melhor marca. Vida se assentou, especialmente depois dos sacolejos de 1999, 2002 e 2004, que abriram várias tumbas, e expuseram diversos esqueletos que, afinal, não saíram andando e devorando as pessoas, como alguns temiam.
Diante da excitação das últimas semanas em torno da aceleração da inflação de 4,5% anuais para 6,0% anuais, a primeira impressão, entre os mais velhos, é a de estamos lidando com lagartixas e não com dinossauros.
A presunção, talvez inocente, é de que esses não são fabricados a partir daquelas, mas os maiores de 50 anos sabem que a exposição prolongada a doses regulares de idéias econômicas radioativas podem metamorfosear animais frágeis em serpentes, que depois viram dragões. Não é muito provável, é claro, e, por isso mesmo, o ministro da Fazenda tem razão em dizer que não há motivo para pânico. Entretanto, esse tipo de desmentido é uma espécie de contradição em termos: se é preciso que o ministro diga algo assim, é por que há motivo para pânico.
E o motivo é muito simples: o ministro, e com ele o governo, não mostra nenhuma convicção de que o problema da inflação tem como causa a política fiscal, o mesmo velho problema. Para não repetir Milton Friedman sobre refeições gratuitas, vale lembrar Machado de Assis, no mesmo espírito: não se pode ir à Glória sem pagar o bonde.
Friday, July 04, 2008
A ética agora é roubar by João Mellão Neto
A ética agora é roubar
João Mellão Neto
Tamanho do texto? A A A A
Quando Fernando Henrique Cardoso, do alto de sua cátedra de sociólogo emérito, declarou, meses atrás, que a "ética do PT é roubar", não foram poucos os protestos escandalizados que ouviu. Hoje em dia, não haveria mais do que murmúrios envergonhados. Quando a corrupção grassa por toda parte, quando o próprio presidente empresta o seu prestígio para defender notórios larápios, é para começar a acreditar na cruel sentença do ex-presidente.
Para quem, por dever de ofício (sou jornalista), vem acompanhando com acuidade a história desse partido, a declaração de Fernando Henrique não tinha nada de surpreendente.
Os primeiros petistas, lá pelos inícios dos anos 80, nutriam uma interpretação muito particular do que fosse corrupção. Para eles, tratava-se de um problema menor, que seria automaticamente banido, uma vez implantada a sociedade sem classes. "O verdadeiro roubo, na sociedade, se dá entre patrões e proletários: tudo o mais advém disso." Como corolário deste raciocínio, não haveria nada de mais entre burgueses espoliando burgueses (isso é próprio do capitalismo) ou, então, entre pseudo-socialistas extraindo verbas do erário (é um dinheiro expropriado da burguesia para ser usado contra a própria burguesia).
Esse discurso, obviamente, não pegou. Não porque os petistas o considerassem de alguma forma equivocado, mas sim porque, na leitura deles, a sociedade brasileira, em especial a classe média, se arraigava a valores conservadores, tais como honestidade, integridade, austeridade e escrúpulo no trato do dinheiro público.
Após apanharem fragorosamente nas urnas por sucessivas eleições, os petistas decidiram fazer uma releitura de seu discurso. Não daquele básico, de extração marxista, razão de ser do partido, mas sim do discurso voltado para as massas. O PT, ao menos nas palavras,tornou-se um partido pequeno-burguês típico, bradando contra a imoralidade, exigindo cadeia para os corruptos e, paranoicamente, encontrando larápios em potencial até mesmo debaixo dos próprios colchões.
Não havia um pingo de sinceridade nesse discurso. Ele serviu apenas como escada para o PT ganhar as eleições. Tanto isso é verdade que foi abandonado com a maior sem-cerimônia, tão logo Luiz Inácio Lula da Silva galgou as rampas do Palácio do Planalto.
Se não o primeiro, o principal sinal de que as coisas haviam mudado se deu com aquele que ficou conhecido como "o escândalo do mensalão". Como teria agido um governo minimamente ético naquelas circunstâncias, desde que não tivesse nada a temer? Teria agido de forma determinada, de modo que não pairasse a menor suspeita sobre a sua lisura no episódio, a começar pela demissão sumária de seu então chefe da Casa Civil. O presidente Lula não só se manteve omisso durante todo o episódio como também atestou, por escrito, a idoneidade de Roberto Jefferson e, posteriormente, a do próprio José Dirceu.
Sucessivos escândalos foram vindo à luz e Lula, numa recorrência espantosa, foi sempre dando sinais de inequívoca simpatia pela causa dos acusados. Foi assim no caso do ex-presidente da Câmara dos Deputados e foi assim no caso do ex-presidente do Senado, Renan Calheiros. Lula entregou-se ao requinte de ressuscitar até mesmo os mortos, como tem ocorrido várias vezes, sendo o caso mais recente o do ex-presidente do Senado Jader Barbalho.
Simpatia pelos deserdados de Deus? Duvido. O mais provável é que o presidente e o seu staff entendam que todo esse pessoal não tenha cometido ilícito algum. Ao menos dentro daquela ética - abandonada provisoriamente, porém jamais esquecida - do partido desde a sua fundação.
Se for assim, estamos mal. O homem público convencional, quando comete um delito, ao menos tem a exata noção do que fez de errado e por quê. Os petistas, não. Cometem as maiores barbaridades e vão dormir de bem com o travesseiro, porque acreditam que tudo o que fizeram teve uma motivação justa: a "causa". Se, decerto, nos anos 60 vários de seus atuais membros se dispunham a matar, ou até mesmo a morrer, em benefício dessa maldita "causa", que mal podem ver, agora, em surrupiar algum dinheiro do erário?
Nesta Nova República delinqüente, a classe média está emparedada. Tradicional reduto dos bons valores republicanos, desta vez ela não tem voz.
Conscientemente ou não, o PT a pinçou com tenazes de aço. Do lado dos pobres, apaziguou-os com a mesada do Bolsa-Família - mesada, sim, porque se trata de um punhado de dinheiro doado sem contrapartida, erodindo a ética do trabalho. Do lado dos ricos, porque com a política dos juros baixos e o crédito a perder de vista lhes propiciou ganhar mais dinheiro do que em toda a sua vida. A classe média, para variar, ficou bradando no deserto - quando não falando sozinha. Ela, sem dúvida, vai votar na oposição nas próximas eleições. Mas o que importa? O PT já amealhou votos suficientes para vencê-la com folga. E, para os petistas, isso é crucial. Calcula-se que, entre empregos diretos e indiretos, o Partido dos Trabalhadores (santa ironia!) tenha uns 40 mil parasitas vivendo à custa do governo. O que farão eles no caso de uma derrota?
Ora, não há bem que sempre dure, nem mal que nunca acabe. O atual modelo econômico tem pés de barro. Essa fartura geral e irrestrita não é fruto de uma eventual maestria de Lula, mas reflexo da maior onda de prosperidade que o mundo conheceu desde a 2ª Guerra Mundial.
Retirem essa poderosa escada e o resultado é que ficarão todos ali. Desesperados, pendurados no pincel.
João Mellão Neto, jornalista, deputado estadual, foi deputado federal, secretário e ministro de Estado
João Mellão Neto
Tamanho do texto? A A A A
Quando Fernando Henrique Cardoso, do alto de sua cátedra de sociólogo emérito, declarou, meses atrás, que a "ética do PT é roubar", não foram poucos os protestos escandalizados que ouviu. Hoje em dia, não haveria mais do que murmúrios envergonhados. Quando a corrupção grassa por toda parte, quando o próprio presidente empresta o seu prestígio para defender notórios larápios, é para começar a acreditar na cruel sentença do ex-presidente.
Para quem, por dever de ofício (sou jornalista), vem acompanhando com acuidade a história desse partido, a declaração de Fernando Henrique não tinha nada de surpreendente.
Os primeiros petistas, lá pelos inícios dos anos 80, nutriam uma interpretação muito particular do que fosse corrupção. Para eles, tratava-se de um problema menor, que seria automaticamente banido, uma vez implantada a sociedade sem classes. "O verdadeiro roubo, na sociedade, se dá entre patrões e proletários: tudo o mais advém disso." Como corolário deste raciocínio, não haveria nada de mais entre burgueses espoliando burgueses (isso é próprio do capitalismo) ou, então, entre pseudo-socialistas extraindo verbas do erário (é um dinheiro expropriado da burguesia para ser usado contra a própria burguesia).
Esse discurso, obviamente, não pegou. Não porque os petistas o considerassem de alguma forma equivocado, mas sim porque, na leitura deles, a sociedade brasileira, em especial a classe média, se arraigava a valores conservadores, tais como honestidade, integridade, austeridade e escrúpulo no trato do dinheiro público.
Após apanharem fragorosamente nas urnas por sucessivas eleições, os petistas decidiram fazer uma releitura de seu discurso. Não daquele básico, de extração marxista, razão de ser do partido, mas sim do discurso voltado para as massas. O PT, ao menos nas palavras,tornou-se um partido pequeno-burguês típico, bradando contra a imoralidade, exigindo cadeia para os corruptos e, paranoicamente, encontrando larápios em potencial até mesmo debaixo dos próprios colchões.
Não havia um pingo de sinceridade nesse discurso. Ele serviu apenas como escada para o PT ganhar as eleições. Tanto isso é verdade que foi abandonado com a maior sem-cerimônia, tão logo Luiz Inácio Lula da Silva galgou as rampas do Palácio do Planalto.
Se não o primeiro, o principal sinal de que as coisas haviam mudado se deu com aquele que ficou conhecido como "o escândalo do mensalão". Como teria agido um governo minimamente ético naquelas circunstâncias, desde que não tivesse nada a temer? Teria agido de forma determinada, de modo que não pairasse a menor suspeita sobre a sua lisura no episódio, a começar pela demissão sumária de seu então chefe da Casa Civil. O presidente Lula não só se manteve omisso durante todo o episódio como também atestou, por escrito, a idoneidade de Roberto Jefferson e, posteriormente, a do próprio José Dirceu.
Sucessivos escândalos foram vindo à luz e Lula, numa recorrência espantosa, foi sempre dando sinais de inequívoca simpatia pela causa dos acusados. Foi assim no caso do ex-presidente da Câmara dos Deputados e foi assim no caso do ex-presidente do Senado, Renan Calheiros. Lula entregou-se ao requinte de ressuscitar até mesmo os mortos, como tem ocorrido várias vezes, sendo o caso mais recente o do ex-presidente do Senado Jader Barbalho.
Simpatia pelos deserdados de Deus? Duvido. O mais provável é que o presidente e o seu staff entendam que todo esse pessoal não tenha cometido ilícito algum. Ao menos dentro daquela ética - abandonada provisoriamente, porém jamais esquecida - do partido desde a sua fundação.
Se for assim, estamos mal. O homem público convencional, quando comete um delito, ao menos tem a exata noção do que fez de errado e por quê. Os petistas, não. Cometem as maiores barbaridades e vão dormir de bem com o travesseiro, porque acreditam que tudo o que fizeram teve uma motivação justa: a "causa". Se, decerto, nos anos 60 vários de seus atuais membros se dispunham a matar, ou até mesmo a morrer, em benefício dessa maldita "causa", que mal podem ver, agora, em surrupiar algum dinheiro do erário?
Nesta Nova República delinqüente, a classe média está emparedada. Tradicional reduto dos bons valores republicanos, desta vez ela não tem voz.
Conscientemente ou não, o PT a pinçou com tenazes de aço. Do lado dos pobres, apaziguou-os com a mesada do Bolsa-Família - mesada, sim, porque se trata de um punhado de dinheiro doado sem contrapartida, erodindo a ética do trabalho. Do lado dos ricos, porque com a política dos juros baixos e o crédito a perder de vista lhes propiciou ganhar mais dinheiro do que em toda a sua vida. A classe média, para variar, ficou bradando no deserto - quando não falando sozinha. Ela, sem dúvida, vai votar na oposição nas próximas eleições. Mas o que importa? O PT já amealhou votos suficientes para vencê-la com folga. E, para os petistas, isso é crucial. Calcula-se que, entre empregos diretos e indiretos, o Partido dos Trabalhadores (santa ironia!) tenha uns 40 mil parasitas vivendo à custa do governo. O que farão eles no caso de uma derrota?
Ora, não há bem que sempre dure, nem mal que nunca acabe. O atual modelo econômico tem pés de barro. Essa fartura geral e irrestrita não é fruto de uma eventual maestria de Lula, mas reflexo da maior onda de prosperidade que o mundo conheceu desde a 2ª Guerra Mundial.
Retirem essa poderosa escada e o resultado é que ficarão todos ali. Desesperados, pendurados no pincel.
João Mellão Neto, jornalista, deputado estadual, foi deputado federal, secretário e ministro de Estado
Tuesday, July 01, 2008
''Generosidade'' versus liberdade by Ilan Goldfajn
''Generosidade'' versus liberdade
A preocupação de curto prazo é a inflação, sem dúvida. Mas o risco maior para o crescimento no médio e no longo prazos se situa numa outra esfera. Melhor explicar com frases que ilustram o ponto. O ministro das Minas e Energia afirmou que ''não se cogita absolutamente de mudar os contratos existentes. Estamos sendo absolutamente generosos'' e, ''na medida em que as empresas apenas estejam auferindo lucros em demasia, deveremos rever essa situação, em benefício de todos'' (Valor Econômico, 27/6). Comentava sobre os ''contratos'' de exploração de petróleo e o desejo do governo de criar mais uma estatal para a nossa vasta coleção. Os ''lucros em demasia'' a serem revertidos são no setor de mineração. O ministro reflete um conflito que transcende a sua área de atuação: os contratos assinados viraram um incômodo e o respeito a eles passou a ser visto como uma generosidade dos atuais dirigentes. A construção institucional feita no passado - respeito a contratos, regulação via agências do Estado e menos intervencionismo - mede forças contra o desejo atual de controlar, dirigir, estatizar.
Há vários exemplos de mudança de direção, como o desmonte do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) - publicações canceladas, funcionários dispensados - e a discussão dos portos - querem licitar portos, mesmo que, absolutamente, privados e já regulados. O cerne do debate sobre o crescimento futuro vai se concentrar neste ponto: haverá liberdade e facilidade para produzir, investir, arriscar e gerar valor no Brasil?
Na discussão macroeconômica, fala-se em claro e bom som da necessidade de resolver os gargalos da economia (ou seja, desobstruir os impedimentos à elevação da produção no médio prazo), de aumentar a oferta disponível, para não ter de desacelerar a demanda, e de incentivar as exportações. No dia-a-dia, a clareza macroeconômica cede lugar a uma combinação cinzenta de ideologias e interesses.
A discussão dos portos é emblemática. Há um visível esgotamento da capacidade portuária no Brasil com o bem-vindo aumento do comércio exterior. Mas existem limites orçamentários para aumentar os investimentos públicos no setor. Como em outras áreas, o progresso vai depender da capacidade de atrair para o setor capitais privados que estejam dispostos a correr o risco do investimento em troca da expectativa de um retorno futuro. O governo tem de ser capaz apenas de mostrar estabilidade macroeconômica e regulatória (manter as regras que ele mesmo estabeleceu) e reduzir os entraves burocráticos a novos investimentos. Mas não é isso o que acontece.
Há interferência na decisão econômica, que deveria ser dos que atuam no setor. Não me refiro aqui à regulação necessária na economia. Afinal, há bens públicos a defender, como o meio ambiente ou o combate à barreira a entradas de novos concorrentes para evitar a formação de cartéis e monopólios. Isso já existe com as diversas agências reguladoras montadas no passado (e sendo enfraquecidas desde então). Nesse caso dos portos, interfere-se arbitrando que a existência de portos estritamente privados tenha de ser justificada apenas com sua carga própria, mesmo que o porto venha também a ser utilizado por terceiros, o que reduziria os custos operacionais pelos ganhos de escala. Ou seja, coloca-se um entrave, cujo custo é claro (retrai investimentos) e o benefício coletivo, duvidoso (qual é o ganho para o cidadão?). Os portos públicos encontram-se também prejudicados pela arbitrariedade das regras e ineficiência do setor público (há custos altos e monopólios sindicais criados pelo governo). Mas isso não é razão para impedir o progresso dos portos privados, mas sim demandar mudanças nas regras ineficientes do governo.
O irônico é que no momento em que a realidade impera e se sinaliza que se ''aceita'' remover esse obstáculo (afinal, quem não quer mais investimentos?), a ideologia e o desejo de controle imperam, e o governo anuncia que, como contrapartida, pretende requisitar plano de outorgas e licitar todos os novos portos, mesmo os privados. Ou seja, se alguém quer investir em portos, vai caber ao governo decidir se é viável e/ou desejável. Por trás dessa iniciativa está um conflito comum hoje no governo: o desejo da nova Secretaria Especial de Portos (criada para acomodar conflitos políticos) de dirigir e decidir sobre o setor para além da regulação exercida pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq). Essa nova exigência de planos de outorga e licitação deve atrasar e/ou desestimular os novos investimentos. Enquanto isso, continuaremos a debater em público, em abstrato, sobre os gargalos da economia e por que o Brasil não consegue crescer mais, sem gerar inflação.
O Ipea e o Indec - Se a sociedade não tomar cuidado, o Ipea vai-se converter no nosso Instituto Nacional de Estadísticas y Censos (Indec)). O Indec, o ''IBGE argentino'', encontra-se num estado de profunda perda de credibilidade, cujas conseqüências vão além do atual governo dos Kirchners. Ao longo dos últimos anos, o governo argentino foi intervindo, censurando suas publicações, demitindo funcionários que se recusaram a seguir as diretrizes governamentais e divulgando estatísticas falsas com o intuito de mostrar uma situação mais favorável ao governo. Por exemplo, a inflação oficial publicada é de ''apenas'' 9,1%, nos últimos 12 meses, enquanto a verdadeira ronda os 30%. A conseqüência é a desconfiança nas instituições e nos números da economia, o que prejudica não só a economia (quem vai investir numa economia baseada em números falsos?), mas a própria democracia. A direção do Ipea, depois de dispensar funcionários competentes por divergências ideológicas, recentemente cancelou a publicação do seu boletim trimestral. Alega que quer concentrar-se nas questões de longo prazo, mas insiste em tecer comentários sobre a taxa de juros de curto prazo no Brasil: comportamento típico do atual Indec.
A preocupação de curto prazo é a inflação, sem dúvida. Mas o risco maior para o crescimento no médio e no longo prazos se situa numa outra esfera. Melhor explicar com frases que ilustram o ponto. O ministro das Minas e Energia afirmou que ''não se cogita absolutamente de mudar os contratos existentes. Estamos sendo absolutamente generosos'' e, ''na medida em que as empresas apenas estejam auferindo lucros em demasia, deveremos rever essa situação, em benefício de todos'' (Valor Econômico, 27/6). Comentava sobre os ''contratos'' de exploração de petróleo e o desejo do governo de criar mais uma estatal para a nossa vasta coleção. Os ''lucros em demasia'' a serem revertidos são no setor de mineração. O ministro reflete um conflito que transcende a sua área de atuação: os contratos assinados viraram um incômodo e o respeito a eles passou a ser visto como uma generosidade dos atuais dirigentes. A construção institucional feita no passado - respeito a contratos, regulação via agências do Estado e menos intervencionismo - mede forças contra o desejo atual de controlar, dirigir, estatizar.
Há vários exemplos de mudança de direção, como o desmonte do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) - publicações canceladas, funcionários dispensados - e a discussão dos portos - querem licitar portos, mesmo que, absolutamente, privados e já regulados. O cerne do debate sobre o crescimento futuro vai se concentrar neste ponto: haverá liberdade e facilidade para produzir, investir, arriscar e gerar valor no Brasil?
Na discussão macroeconômica, fala-se em claro e bom som da necessidade de resolver os gargalos da economia (ou seja, desobstruir os impedimentos à elevação da produção no médio prazo), de aumentar a oferta disponível, para não ter de desacelerar a demanda, e de incentivar as exportações. No dia-a-dia, a clareza macroeconômica cede lugar a uma combinação cinzenta de ideologias e interesses.
A discussão dos portos é emblemática. Há um visível esgotamento da capacidade portuária no Brasil com o bem-vindo aumento do comércio exterior. Mas existem limites orçamentários para aumentar os investimentos públicos no setor. Como em outras áreas, o progresso vai depender da capacidade de atrair para o setor capitais privados que estejam dispostos a correr o risco do investimento em troca da expectativa de um retorno futuro. O governo tem de ser capaz apenas de mostrar estabilidade macroeconômica e regulatória (manter as regras que ele mesmo estabeleceu) e reduzir os entraves burocráticos a novos investimentos. Mas não é isso o que acontece.
Há interferência na decisão econômica, que deveria ser dos que atuam no setor. Não me refiro aqui à regulação necessária na economia. Afinal, há bens públicos a defender, como o meio ambiente ou o combate à barreira a entradas de novos concorrentes para evitar a formação de cartéis e monopólios. Isso já existe com as diversas agências reguladoras montadas no passado (e sendo enfraquecidas desde então). Nesse caso dos portos, interfere-se arbitrando que a existência de portos estritamente privados tenha de ser justificada apenas com sua carga própria, mesmo que o porto venha também a ser utilizado por terceiros, o que reduziria os custos operacionais pelos ganhos de escala. Ou seja, coloca-se um entrave, cujo custo é claro (retrai investimentos) e o benefício coletivo, duvidoso (qual é o ganho para o cidadão?). Os portos públicos encontram-se também prejudicados pela arbitrariedade das regras e ineficiência do setor público (há custos altos e monopólios sindicais criados pelo governo). Mas isso não é razão para impedir o progresso dos portos privados, mas sim demandar mudanças nas regras ineficientes do governo.
O irônico é que no momento em que a realidade impera e se sinaliza que se ''aceita'' remover esse obstáculo (afinal, quem não quer mais investimentos?), a ideologia e o desejo de controle imperam, e o governo anuncia que, como contrapartida, pretende requisitar plano de outorgas e licitar todos os novos portos, mesmo os privados. Ou seja, se alguém quer investir em portos, vai caber ao governo decidir se é viável e/ou desejável. Por trás dessa iniciativa está um conflito comum hoje no governo: o desejo da nova Secretaria Especial de Portos (criada para acomodar conflitos políticos) de dirigir e decidir sobre o setor para além da regulação exercida pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq). Essa nova exigência de planos de outorga e licitação deve atrasar e/ou desestimular os novos investimentos. Enquanto isso, continuaremos a debater em público, em abstrato, sobre os gargalos da economia e por que o Brasil não consegue crescer mais, sem gerar inflação.
O Ipea e o Indec - Se a sociedade não tomar cuidado, o Ipea vai-se converter no nosso Instituto Nacional de Estadísticas y Censos (Indec)). O Indec, o ''IBGE argentino'', encontra-se num estado de profunda perda de credibilidade, cujas conseqüências vão além do atual governo dos Kirchners. Ao longo dos últimos anos, o governo argentino foi intervindo, censurando suas publicações, demitindo funcionários que se recusaram a seguir as diretrizes governamentais e divulgando estatísticas falsas com o intuito de mostrar uma situação mais favorável ao governo. Por exemplo, a inflação oficial publicada é de ''apenas'' 9,1%, nos últimos 12 meses, enquanto a verdadeira ronda os 30%. A conseqüência é a desconfiança nas instituições e nos números da economia, o que prejudica não só a economia (quem vai investir numa economia baseada em números falsos?), mas a própria democracia. A direção do Ipea, depois de dispensar funcionários competentes por divergências ideológicas, recentemente cancelou a publicação do seu boletim trimestral. Alega que quer concentrar-se nas questões de longo prazo, mas insiste em tecer comentários sobre a taxa de juros de curto prazo no Brasil: comportamento típico do atual Indec.
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